Paulo
Vanzolini é um compositor
de amigos .
Fui
até sua
casa de vila
por uma consulta ao zoólogo
para um livro de fotos sobre a Universidade .
Tinha já
me dito ,
telegráfico , que
sobre o assunto
do livro não
tinha como
ajudar . “Venha quando
quiser, mas sobre
isso não
tenho contribuição , meu
trabalho é diferente ”.
Ele ainda
ignorava que minha
razão maior
era o encantamento
pela sua
música , a caixinha
“Acerto de Contas ”,
cujas letras já
sabia de cor . Receberam-me, ele e a Ana
Bernardo, a ótima intérprete
de “Seu Barbosa”, com
café e água .
Achei que cerveja
seria mais adequado, mas fui protocolar
e envergonhado e não sugeri.
No
caminho , ouvindo MP3 no carro , tinha listado meus sambas favoritos
e marcado aqueles sobre
os quais gostaria de esclarecer
um ou
outro ponto pra mim obscuro na letra .
Uma grande lista ,
“grande demais ”,
pensei, não contava falar
de tudo . Falamos sobre
muito mais .
Recebeu-me por uma hora .
Meio tímido ,
fui eu que
dei o final do encontro ,
pois não vi um único sinal de impaciência .
Disse-lhe,
de cara , que
o punha na primeira
fila dos grandes
compositores nacionais ,
pelas ótimas músicas e, principalmente , pelo coloquial , pelo humor das letras
(nunca triviais ,
muitas vezes doloridas) e pelas mulheres , nelas tratadas sem
adulação .
Paulo
Vanzolini não adula as mulheres quando
fala de amor ,
defeito de muitos
compositores brasileiros ,
esses verdadeiramente machistas .
E
Paulo não se quer
adulado. Baixou os olhos toda vez em que elogiei sua obra . Dizem
(parece que os orientais )
que não
se deve responder aos elogios .
Paulo não responde, olha
o chão de seu
interior . Chão
que ele
e o Adoniran traduziram à perfeição .
No
encontro confirmei uma desconfiança que tem me acompanhado por
anos : a estrofe
“A tua saudade corta / como aço de
navaia / o coração fica aflito / bate uma a outra
faia, / os zóio se enche dágua / que até a vista se
atrapaia” foi Vanzolini quem escreveu. Eu me
empolguei: “ ‘bate uma a outra faia’ ,
Paulo, é um
dos meus versos
favoritos na MPB”.
“É
verso de médico ”,
riu. “Os cardiologistas gostam”.
-
A Universidade não
é fácil .
E
voltávamos ao samba .
-
A música me
deu muita satisfação .
Li
na lista “Amor de trapo e
farrapo ” e lhe
disse ser música
que eu
e minha mulher
ríamos juntos : éramos nós . E ficamos nos
sambas sobre
as mulheres . Contei também ,
já ia mais
íntimo , que ,
diante de alguns
versos , minha
mulher se espantava, por masculinos demais . Apenas
sorriu, sorri também , conversa
de homem , de salão .
“Quem é Irede, Paulo?” (da música
“Trato do homem ”
- “Diga Irede o que quiser / o que mais
enfeita a mulher / ainda
é o trato do homem ”).
“É minha amiga
Irede Cardoso, lembra dela, a vereadora feminista ?,
que botei aí ,
provocação ”. Falei-lhe que
a idéia de que
o amor embeleza a mulher
tinha sido usada pelo
Chico Buarque, em “Anos Dourados ”, com o Tom (“no nosso
retrato / pareço tão
linda ”), e arrisquei que há muita influência da música
de Paulo na do Chico.
Recusou
fortemente . “De jeito
nenhum ! O Chico tinha
dezoito e me mostrou ‘Pedro Pedreiro ’,
dezoito!, uma música perfeita , nem
sabia que ele
fazia sambas e me
mostrou aquilo pronto ”.
“Você não
sabia, mas vai ver
que ele
te ouvia”, eu
disse. “De jeito nenhum ”.
Fim de papo .
“Paulo,
até onde
eu sei, só
você , o Noel e o Chico com
o Edu fizeram músicas
sobre leilão .
Três lindas músicas ”.
“O Chico tem uma? Não conheço”.
“Pra mim , a sua é a melhor ”.
“
‘Leilão ’, era
a preferida do Luiz Carlos Paraná . O Paraná morreu com
cirrose sem
nunca ter
bebido, decorrência de hepatite infantil . Eu estava com ele no momento .”
Elogiei
“Napoleão” (“pondo a modéstia de parte
/ é Napoleão Bonaparte e eu / que sabemos na verdade / o quanto dói uma saudade ”).
Só olhou pra
baixo , manteve a modéstia .
-
A música me
deu muita alegria .
Citando
o Luiz Gonzaga Neto , amigo , esse meu , que me acompanha no entusiasmo
diante de “Longe
de casa eu
choro / e não
quero nada ”, eu
lhe disse que
é música de amor
a São Paulo, sem
aquelas críticas que
sempre permeiam as letras
sobre a cidade .
“Fiz essa letra quando
estudava nos Estados
Unidos. Saía pela rua ,
chorava muito e pensava ‘o que estou fazendo aqui ,
longe de São
Paulo?’ ”. Elogiou o Gudin, parceiro genial que
botou música nessa letra ,
e o Paulinho Nogueira , parceiro em
outras.
“Seu
Barbosa” foi encomendada pelo Paraná , que ia dar uma medalha , no Jogral , ao Adoniran. Encomendou um
samba que
falasse dele e que fosse à sua moda . Música de amigo .
“Capoeira
do Arnaldo” foi provocação do
Arnaldo Pedroso d’ Horta , “você se diz compositor
e não tem nenhuma capoeira ”.
“No dia seguinte
mostrei essa”. Música de amigo .
“Peça
de Albene” é sobre uma mulher que ia
ao bar de calcinha
e sutiã , apenas
enrolada em um
pano , preso só com alfinetes (“quem
põe a mão se cutuca” – genial interpretação
da Pii). “Só tinha
um livro :
a Enciclopédia Britânica ”.
Música de amigo .
“Samba
Abstrato ” mostrou
também para
ao d’ Horta , ainda
sem título ,
e, no dia seguinte ,
estava no Jornal da Tarde ,
batizada . Música
reconhecida por amigo .
Falou
de parceiros mais
uma vez . “É difícil
achar parceiros ”.
Amigos parceiros ,
uma ou outra
mágoa . Elogiei de novo :
“seus sambas
são variados, tem à moda
do Adoniran, uns ficam bem na voz
do Paulinho da Viola , outros na voz
do Chico, ou na do Carlinhos Vergueiro, porque são sambas pra eles , mesmo que isso não fosse deliberado”.
“O
Paulinho da Viola sempre
me pede que
ponha letras nas músicas
dele, mas não
sei fazer música
por encomenda ”.
“Não faço mais músicas . A última
foi ‘quando eu
for, eu vou sem
pena / pena
vai ter quem
ficar ’. Eu
fiz quando estava sozinho
numa fazenda , tava
lá sozinho
e fiz.”
“Eu já te disse e repito, você , pra mim , está entre os grandes
da MPB”.
“Nada , fiz pouca
música . Pra
completar a caixinha
‘Acerto de Contas ’
foi difícil . Alguma coisa
eu esqueci, mas
não é importante
ter esquecido”. “O Caymmi também
fez poucas, isso não
importa”, respondi. “Fez mais do que eu ”. “Um pouco mais , mas não importa”, insisti.
“Um grande cara o Caymmi, bom amigo . Divertido .
Compositor magnífico .
Uma vez o encontrei num lugarejo de meio
de mato sentado numa soleira
tocando violão ”.
Contei-lhe
que “Volta por cima ” é música
que me
tocou, muito menino
ainda , sem
saber por quê . Lembrança definitiva de infância
como o gosto
de pizza , por
causa do azeite ,
que não
tinha na minha
casa ; como
o cheiro da cama
de meus pais ,
quando me
recebiam entre eles
de manhã ; como
a primeira visão
do santuário de Congonhas
do Campo ; como
o toque na primeira
cintura de moça ,
no bailinho de garagem , lá em Jundiaí.
Disse
que não
consegue traduzir “Volta por
cima ” para
o inglês . “Você criou uma
expressão ”.
Explicou
que “Acerto
de Contas ” tinha
esse nome
por acertar
as contas com
os músicos que
sempre tocaram com
ele . Coisa de
amigo . Falei que ,
se era por
isso , tinha
dois sentidos ,
pois também era um acerto de contas
da MPB com o grande
compositor que
ele é e, com
essa caixinha de quatro
CD’s, agora se conhece melhor .
De
“Ronda ”
não falei. Não
gosto de “Ronda ”. E nem de “Sampa”.
Paulo
Vanzolini é homem de amigos . Nem me conhecia e me
recebeu como amigo .
Sinto que a força se
esvai.
Da fibra e do pensamento ,
A resistência descai.
Jesus Cristo sendo o Pai .
Resisto,
porém não
sei até quando
No fim acabo ajoelhando,
De que fundamentalmente
E ser igual a toda gente .
É tudo um sonho , tudo uma
sombra , uma ideia,
Espero
que o pano
caia
E o tempo se distrai
No momento que vai
Do grito ouvido ao vidro estilhaçado
É que eu paro ao teu lado ,
E nós trocamos vidas
perdidas por horas
roubadas.
A sorte não dá pra todos
De um lado tem maré alta ,
Do outro , praia de
fora .
Cabe outra vida na vida
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